quinta-feira, 23 de setembro de 2010

EXistenZ

A cultura contemporânea mistura, absorve, redistribui figuras outrora rigidamente interpretadas, desconstruindo-as, renomeando-as. Tudo é bifurcação exausta. A linguagem já não serve para instituir uma ordem e uma segurança. A tecnologia contemporânea está a deslocar os limites do humano. No ciberespaço podem ter-se várias personalidades: cabeças fabricadas com mãos de arame que interagem de forma esquizóide, com múltiplas personalidades projectadas simultaneamente para fora. Pelo menos imaginariamente. E se não passássemos de seres tecidos por ondas luminosas e sons repetidos? Que representa hoje o tecnoparaíso? Que utopia encarna o desejo maquínico? E porque é "eXistenZ" a metáfora do inferno? É verdade que "o inferno são os outros" como dizia Sartre? Anuncia o "inferno" de Cronenberg, que utiliza a pornografia, o terror e a abjecção como temas filosóficos filtrados pelo prisma da ciência, da medicina e da tecnologia, a destruição eminente de nós mesmos? Não são o tecnoparaíso e o inferno de "eXistenZ" irmãos gémeos nascidos da mesma mutação em que o corpo e a máquina se conjugam para fabricar o real? Não assenta o caminho que leva ao paraíso (e ao inferno) numa matriz alquímica que mergulha no inferno das minas, que se exalça ao paraíso nas drogas e se liga hoje através da electrónica?

A base primeira de tudo o que acontece é o "lugar", entenda-se a essência enquanto relação. O próprio saber não é nem saber dum objecto nem o saber dum ser mediador do todo, mas saber do lugar. Habitar foi sempre viver-com. O próprio sonho é o lugar da anamnese, da unidade. A própria terra é lugar de epifania da paisagem, cujo modelo é o sítio paradisíaco, o Jardim. Primeiro foi a religião que prometia esse lugar edénico, o lugar da visão beatífica, como recompensa das boas obras ou da boa vida. O Inferno é o lugar de tormentos que merece o ímpio por ter perdido o rosto. A ciência substituíu a religião prometendo a imortalidade, depois foi a onda das ideologias que invadiu tudo com a sua manta aeriforme; hoje é a cibercultura que aparece como uma perspectiva humanista que actualiza os princípios de liberdade, de igualdade e de fraternidade do século XVIII, com alguns desvios e acentuações, sobretudo no domínio da arte.

São Tomás falava dos lugares do Além como “quasi loci”, o que desde logo marca a sua indeterminação espacial. Giorgio Agamben, no seu livro "A Comunidade que vem" qualifica as personagens de Robert Walser como "habitantes do limbo", criaturas "irremediavelmente extraviadas" que vagabundeiam numa região que está para além da perdição e da salvação". Entende-se: o limbo é para os teólogos o lugar para onde vão as crianças que morrem sem terem sido baptizadas aí permanecendo para toda a eternidade privadas da visão de Deus. Mas até esse "lugar" desertou do catecismo da Igreja católica. A geografia do além correspondia, em grande parte, a uma topofobologia do sujeito. Nessa mundividência, o além é ainda um espaço hierarquizado. Na Net a imagem de rede substituíu a imagem de um espaço hierarquizado. É o que Edward Soja chama “the dynamics of capitalist spatialization”: as novas paisagens urbanas não têm centro . A cibercultura é a concretização técnica de vários ideais revolucionários, alguns deles de raíz joaquimita. O ciberespaço promete, como a Nova Jerusalém, a imponderabilidade, o brilho, palácios no interior de palácios, a transcendência da natureza e o pleroma de todas as coisas culturais.

A censura, a vigilância, a genética e a monitorização das provas farmacológicas, as comunciações televisivas e outros meios tecnológicos sobrepõem-se agora numa simbiose que enlaça o mental e o físico. Os filmes de David Cronenberg manifestam resolutamente uma consciência aguda da corporalidade. "Não penso que a carne seja necessariamente traiçoeira, perversa...É como o colonialismo...A independência do corpo relativamente à mente e a dificuldade da mente para aceitar o que essa revolução pode acarretar" (CC, 80). A insurreição biológica, v.g. domina toda esta filmografia que é um híbrido de orgânico e de tecnológico. Os seus filmes são anatomias do impacto da tecnologia sobre a psique pós-humana, com ênfase particular nas experimentações genéticas e do comportamento, a saturação da realidade com simulacros, as subversões do sexo e do género. Nesta mesa de dissecação anatómica de carne e de sentimentos fundem-se as velhas dualidades cartesianas de mente e corpo, dentro e fora, razão e emoção e começamos a ver surgir novas possibilidades de metamorfose evolutiva. O corpo e os seus tormentos são aqui o lugar de exploração em que tudo vacila: doenças, deformações, mutações, decomposição, parasitismo, enxertos, de par com obsessões, nevroses, perturbações mentais, identidades duplas, alucinações, desrealizações.

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