domingo, 28 de agosto de 2011

Tão longe, Tão perto

Tão longe, Tão perto (Faraway, So Close) Wim Wenders. Transcrição das falas entre Raphaela e Cassiel (Nastassja Kinski e Otto Sander)


Estou cansada, Cassiel.
É cansativo amar pessoas
que insistem em fugir de nós.
Porque elas nos afastam
cada vez mais?
Porque temos um inimigo
poderoso, Raphaela.
As pessoas acreditam mais
no mundo do que em nós.
E, para acreditar ainda mais,
criaram uma imagem em tudo.
Elas esperam que as imagens
afastem seus medos...
realizem seus sonhos...
ofereçam-lhe prazer,
satisfaçam seus desejos.
Os homens não dominam a Terra,
eles foram dominados.
Lembra-se de como era simples?
Nós aparecíamos...
e colocávamos palavras
em seus corações.
Podíamos dizer:
"Não tema, eu vim para revelar".
Foi quando éramos só vozes.
As pessoas se cercam
de novas mentiras a cada dia.
Mentiras maiores,
mais perversas e intrusivas...
que entorpecem os sentidos e os
impedem de ouvir nossa mensagem.
O coração deles endureceu,
seus olhos estão fechados...
e seus ouvidos ouvem mal.
Assim, não vêem com os olhos...
não ouvem com os ouvidos
e não entendem com o coração.
Como gostaria de ser um deles!
Ver com os olhos deles,
ouvir com os ouvidos deles...
entender como vivenciam
o tempo e sentem a morte...
como amam e percebem o mundo.
Ser um deles...
e ser um mensageiro mais
brilhante, nesses dias obscuros.
Vamos nos despedir por hoje, Raphaela.

domingo, 21 de agosto de 2011

ASAS DO DESEJO

ASAS DO DESEJO (DER HIMMEL ÜBER BERLIN), de Win Wenders - compilação de falas.

"Olhe.
O consolo de levantar a cabeça à luz...
de ver as cores iluminadas
pelo sol...
nos olhos dos homens.
Enfim louca, não mais sozinha.
Enfim louca, enfim redimida.
Enfim louca, enfim em paz.
Enfim uma luz interna."

"Ainda o mesmo cheiro. Mais empoeirado, apenas.
Ela colecionava de tudo.
Selos, cartões-postais.
Até bilhetes de metrô.
Ela nunca jogava nada fora.
Mãe. Minha mãe.
Ela nunca foi uma mãe.
Meu pai...
Meu pai foi um pai.
Ela está morta.
Sem lágrimas, sem pesar. Talvez depois.
Deus, como estou velho!
Minha irmã. Tenho de sair daqui.
Ela nunca me amou.
E você também. Só finge.
Fique feliz que todos esqueceram você.
Agora é livre.
"Quero morrer agora mesmo
e logo viver para sempre", ela me disse."

"Bem?
Nascer do sol às 7.22 am, pôr do sol às 4.28 pm.
A lua sobe às 7.04 pm, a lua desce...
O nível dos rios Havel e Spree...
Hoje faz 20 anos, um jato soviético
caiu num lago em Spandau.
50 anos atrás, aconteceram...
- As Olimpíadas.
200 anos atrás, N. F. Blanchard
sobrevoou a cidade num balão.
Como fizeram os refugiados do outro dia.
- E hoje...
Na calçada Lilienthaler:
Um homem desacelera o andar...
até que olha sobre o ombro,
para o vazio.
No posto de correio 44, um homem
que queria dar um fim em tudo...
coloca em cada uma
de suas cartas de despedida,
um selo comemorativo diferente.
Na praça Mariannen
falou em inglês com um soldado americano
pela primeira vez desde seus
dias de estudante, e soou fluente.
No presídio de Plotzensee, um preso antes de bater a
cabeça contra a parede disse: "agora".
No metrô, um funcionário, em vez de falar o nome da
estação em que paravam, a do Zoológico,
de repente, gritou: "Terra do Fogo. "
- Hilário!
Em Rehbergen, um homem mais velho lia a
"A Odisséia" para uma criança...
e o jovem ouvinte
não piscava nem os olhos.
E você, o que tem para contar?"

"Uma mulher fechou seu guarda-chuva
sob a chuva, ficando ensopada.
Um estudante descreveu o crescimento
de uma planta ao seu professor,
que ficou surpreso.
Uma mulher cega que pegou no relógio,
sentindo minha presença.
É fabuloso viver só em espírito,
dia a dia, eternamente...
testemunhar o que é espiritual nas pessoas.
Mas às vezes fico farto
com a minha existência espiritual...
Gostaria de deixar de flutuar
eternamente nas alturas.
Gostaria de sentir um certo peso...
acabar com a ausência de
fronteiras e me unir à Terra.
Gostaria de a cada passo,
a cada lufada de vento,
ser capaz de dizer:
"Agora, agora e agora. "
Não mais:
"Para sempre" e "Pela eternidade".
Sentar no lugar vago da mesa de cartas,
sem dinheiro, e ser cumprimentado
mesmo que por um
pequeno gesto de cabeça.
Sempre que participamos de algo,
foi fingindo.
Fingimos que numa luta,
deslocamos o quadril...
fingimos pescar um peixe.
Fingimos sentar à mesa,
beber e comer.
Cordeiros tostados e vinho servidos
nas tendas do deserto...
apenas um fingimento.
Não quero gerar uma criança
ou plantar uma árvore...
mas seria bom, chegar em
casa depois de um longo dia...
e alimentar o gato,
como faz Philip Marlowe...
ter uma febre, melar os dedos
de preto com o jornal.
Se entusiasmar não só com coisas
espirituais, mas com uma refeição,
com o contorno de um
pescoço, com uma orelha.
Mentir deslavadamente.
Sentir o sorriso de alguém.
Ao andar, sentir os ossos
se movimentando.
Por fim "achar"
ao invés de "saber".
Poder dizer:
"Ah" e "Oh" e "Ei"...
ao invés de: "Sim" e "amém.""

"- Sim.
Poder, pelo menos uma vez,
se entusiasmar com o mal.
Atrair para si os demônios
dos transeuntes...
e caçá-los no mundo.
Ser selvagem.
Ou por fim sentir como seria tirar
os sapatos debaixo da mesa...
e, descalço, mover os dedos assim...
Ficar sozinho.
Deixar as coisas acontecerem.
Ser sério.
Só podemos ser selvagens
na medida em que formos sérios.
Não fazer nada além de olhar.
Reunir, testemunhar, dar fé, proteger...
Permanecer sendo espírito.
Manter-se à distância. Ficar na palavra."

"Fale-me, musa,
sobre o contador de estórias...
que foi empurrado
à beira do mundo...
que tanto é uma criança quanto um velho,
em que nele se revela o homem comum.
Com o tempo, aqueles que me escutavam
se tornaram meus leitores.
Não se sentam mais em círculos,
mas separados...
e um não sabe nada
sobre o outro.
Sou um homem velho,
com a voz quebrada...
mas a estória ainda se
levanta das profundezas...
e a boca entreaberta...
a repete poderosamente
mas sem esforço,
Como uma liturgia na qual
ninguém precisa ser iniciado...
no significado
das palavras e das frases."

"Por que estou vivendo?
Por que estou vivendo?
Como vou pagar?
Com a minha pensão de miséria...
Você está perdido,
e isto pode durar muito.
Abandonado pelos pais,
traído pela esposa.
O amigo em outra cidade,
seus filhos só lembram do seu silêncio.
Poderia bater em mim mesmo
enquanto me olho no espelho.
O que é isso?
O que está acontecendo?
Mas continuo aqui.
Querer é poder...
É uma questão de querer,
para poder me levantar deste poço.
Me deixei afundar,
mas com esforço posso me levantar.
Claro, mamãe estava certa...
Não adianta se entregar."

"Está acabado. Nem sequer um temporada.
Mais uma vez,
sem tempo para terminar algo.
Esta noite será a última do meu velho número.
E é lua cheia.
E a trapezista vai cambaleante...
Quieta.
Nunca imaginei que o adeus ao circo seria assim.
Na noite passada ninguém apareceu
e vocês se apresentaram como uns tolos...
e eu voei pelo picadeiro
como uma pobre galinha.
E agora voltarei a ser garçonete.
Merda.
Momentos como aquele,
como este de agora...
serão uma bela memória
dentro de 10 anos.
O tempo curará tudo,
mas e se o tempo for a doença?
Como se às vezes temos de nos
inclinar para continuar vivendo.
Viver... Uma olhada é o bastante.
O circo... Terei saudades.
Engraçado.
É o fim e não sinto nada.
Um anjo passa...
Devo parar de ter
maus pensamentos.
Como se a dor não tivesse passado.
Tudo se acaba quando está apenas começando
a ser bom demais para ser verdade.
Enfim fora, na cidade.
Descobrir quem sou,
quem me tornei.
Na maior parte do tempo,
estou muito consciente para estar triste.
Esperei uma eternidade
para ouvir uma palavra amorosa.
Então viajei.
Alguém que dissesse:
"Te amo tanto hoje."
Seria maravilhoso.
Eu olho para cima e o mundo
aparece diante dos meus olhos...
e preenche meu coração.
Quando criança,
queria viver numa ilha.
Uma mulher sozinha,
gloriosamente sozinha.
Sim, é isso.
Tudo tão vazio, incompatível.
O vazio, o medo.
O medo, o medo, o medo...
O Medo.
Como um pequeno animal,
perdido nos bosques.
Quem é você?
Já não sei mais.
Mas disso sei:
Não serei mais uma trapezista.
Não devo chorar. As coisas são como são.
Acontece,
nem sempre como se deseja.
O vazio, tamanho vazio...
O que devo fazer?
Não mais pensar.
Apenas estar.
Berlin... Aqui sou uma estranha,
e ainda assim tudo é tão familiar.
Você pode se perder,
que sempre vai parar na Parede.
Espero por minha foto na máquina,
e ela vem com outro rosto.
Este pode ser o início de uma estória...
Os rostos... Gostaria de ver rostos.
Talvez encontre emprego como garçonete.
Esta noite me assusta.
É bobo, mas o medo me faz sentir doente.
Apenas parte de mim se preocupa,
a outra parte não acredita.
Como devo viver?
Talvez esta não seja a pergunta.
Como devo pensar?
Sei tão pouco. Talvez
porque seja sempre só curiosa.
Algumas me equivoco pensando...
porque penso como se estivesse falando com outra pessoa.
Abro os olhos fechados,
fecho os olhos de novo.
Então até as pedras criam vida.
Estar com as cores.
As cores.
Luzes de neon no céu da noite,
o metrô vermelho e amarelo.
Desejando... Desejando.
Só preciso estar preparada.
Desejo uma onda de amor
que me balance.
É isto que me faz desastrada,
a ausência de desejo.
Desejo de amar.
Desejo de amar."

"Não olhe.
Nunca viu ninguém morrer?
Merda, cheiro de gasolina.
Não posso... Tudo estava claro.
Estão de pé parados,
me olhando.
Deveria ter dito a ela ontem
o que sentia...
Karin! Não posso ir assim...
Tenho ainda tanto para fazer...
Enquanto subia a montanha deixando
o vale nebuloso em direção ao sol...
A carne no fogo,
as batatas nas cinzas...
a casa flutuante no lago.
A Cruz do Sol. O Leste Distante.
O Grande Norte. O Oeste Selvagem.
O Lago do Grande Urso.
A Ilha de Tristan de Cunha.
O Delta do Mississippi. Stromboli.
As velhas casas de Charlottenburg.
Albert Camus.
A Luz da manhã, que as fadas fizeram... Os olhos de uma criança... -O que fazem aí parados?-
Chamaram uma ambulância, ao menos? - Nadar perto de uma cachoeira.
As primeiras gotas de chuva.
O sol.
O pão e o vinho. Ter esperança.
Páscoa. As veias das folhas.
A grama ao vento.
A cor das pedras.
As pedrinhas no leito do rio.
A toalha de mesa lá fora.
O sonho da casa dentro de casa.
O ente querido dormindo
no quarto ao lado.
O domingo pacífico.
O horizonte.
A luz do quarto
no jardim.
O vôo noturno.
Andar de bicicleta sem as mãos.
A bela estranha.
Meu pai.
Minha mãe.
Minha esposa.
Meu filho."

"O mundo some no crepúsculo...
Mas continuo narrando
como no início...
Na minha voz cantante
que me sustenta.
Este relato me exime dos
problemas do presente...
e me salva do futuro.
Chega de pensar nos séculos
passados e futuros...
Eu agora só penso num dia de cada vez.
Minha admiração não mais pertence
aos guerreiros e reis...
mas sim aos objetos de paz,
todos igualmente válidos.
A cebola seca é tão válida quanto a carcaça de árvore
que atravessa o pântano.
Mas ninguém conseguiu ainda
cantar um épico sobre a paz.
O que há de errado com a paz
que sua inspiração não dura
tempo suficiente para ter
a estória contada?
Devo desistir?
Se eu desistir, então a humanidade
perderá seu contador de estórias.
E, se isso acontecer,
a humanidade também perderá sua infância.
Não consigo achar a Praça Potsdamer.
Aqui? Não pode ser aqui.
A Praça Potsdamer...
Era onde o Café Josti costumava ficar.
Nas tardes, costumava ir
lá para conversar e tomar café...
e observar a multidão.
Antes disso eu fumava meu cigarro
na Loese e Wolf...
uma renomada tabacaria.
Ali do outro lado.
Esta não pode ser a Praça Potsdamer.
E não tem ninguém para perguntar.
Era um lugar alegre.
Com bondes e carruagens
e dois carros:
o meu e o da loja de chocolates.
A loja Wertheim ficava lá, também.
E de repente,
as bandeiras apareceram.
Aqui...
Toda a Praça
ficou coberta com elas.
E as pessoas já não eram mais amigáveis...
nem a polícia.
Não irei desistir
enquanto não encontrar
a Praça Potsdamer.
Onde estão meus heróis?
Onde estão eles, minhas crianças?
Onde está minha gente, os teimosos, os originais,
os que eram daqui?
Me recorde, musa,
do nome do cantor imortal
que, abandonado pela platéia mortal,
perdeu sua voz.
Ele que, de anjo de poesia que era,
se tornou o tocador de
órgão ignorado e ridicularizado
lá fora, nos limites da terra de ninguém."

"Ainda existem fronteiras?
Mais do que nunca.
Cada rua tem sua própria fronteira.
Entre cada lote existe um pedaço
de terra que não pertence a ninguém...
escondido pelo mato ou por uma vala.
Quem se atrever a ir lá,
cairá numa armadilha...
ou será atingido por raios laser.
As trutas na água
são na verdade torpedos.
Cada proprietário, ou mesmo inquilino...
mostra seu nome na placa da porta
como se fosse um escudo...
e estuda o jornal
como se fosse um líder mundial.
Na Alemanha, cada indivíduo é um estado próprio.
E estes pequenos estados são móveis.
Cada um leva o seu consigo...
e exige um pedágio quando outro quer entrar em suas fronteiras.
Para entrar, o outro deve pagar tributos impossíveis,
como uma mosca presa no âmbar ou uma tira de couro.
E isso só com relação às fronteiras...
Porque só se pode entrar nos estados
portando as senhas corretas.
A atual alma alemã só pode
ser conquistada e governada...
por aquele que chegar em
cada estado com a senha correta.
Por sorte, ninguém até agora
conseguiu tal façanha.
Então todos imigram e levantam
suas próprias bandeiras ao redor do mundo.
Até seus filhos demarcam domínios...
espalhando sua própria
sujeira ao redor de si.

"A única coisa da qual
sentirei falta lá de fora,
do reino da luz,
serão os pardais."

"A vida?
"Se não a tivesse, sentiria falta".
Disse o general à puta.
Ou a puta ao general, tanto faz..."

"Você lembra da sua primeira visita aqui?
A História ainda não havia começado.
Deixamos as manhãs e as noites passarem,
e esperamos.
Demorou muito para o rio encontrar seu
leito e para a água estanque começar a jorrar.
O vale do rio primitivo.
Um dia, ainda lembro...
as geleiras se derreteram
e os icebergs foram para o norte.
Uma árvore passou, ainda verde,
com o ninho vazio de um pássaro.
Apenas os peixes saltaram
durante uma miríade de anos.
Então veio o momento
quando as abelhas se afogaram.
Algum tempo depois,
dois cervos brigaram na margem.
Depois a nuvem de moscas.
E os chifres, como galhos, flutuando rio abaixo.
Só o mato voltou a crescer,
cobrindo as carcaças dos
gatos selvagens, javalis e búfalos.
Lembras...
daquela manhã na savana,
quando ainda sujo de grama na testa...
apareceu o bípede, à nossa imagem,
tão esperado?
Lembras que a sua
primeira palavra foi um grito?
Ele disse "Ah", "Oh",
ou foi simplesmente um grunhido?
Por fim podíamos rir dos
homens pela primeira vez.
E através do seu grito, e dos gritos
de seus sucessores, aprendemos a falar.
Uma longa estória!
O sol,
os relâmpagos e os trovões no céu.
E na Terra, as
fogueiras, os saltos no ar,
as danças em círculo,
os sinais, a escrita.
Mas então, de repente, um deles
rompeu o círculo e começou a correr.
Enquanto corria em linha reta,
às vezes se virando, talvez devido à alegria,
parecia livre,
e nós pudemos rir de novo com ele.
Entretanto, de repente,
começou a corer em ziguezague
e as pedras voaram.
Com isto começou outra história,
a história da guerra.
Que dura até hoje.
Mas a primeira história,
a da grama, a do sol,
a dos saltos
e a dos gritos, continua também.
Lembras como abriram o caminho
por onde, no dia seguinte,
o exército napoleônico se retirou?
Logo o pavimentaram.
E hoje está comberto pelo mato,
enterrado como uma calçada romana,
junto aos rastros dos tanques.
Mas não éramos nem espectadores.
Até para isso éramos poucos.
- E você realmente quer...?
- Sim.
Conquistar uma história própria.
Me transmutar...
Fazer o que minha eterna observação me ensinou,
como dar um olhar que se sustenta,
dar um grito curto,
sentir um odor azedo.
Já estive fora tempo suficiente,
ausente tempo suficiente.
Tempo suficiente fora do mundo.
Quero entrar na história do mundo.
Ou apenas segurar uma maçã na mão.
Veja, as penas na água,
já se foram.
Veja,
as marcas de pneus no asfalto,
a piúba de cigarro que rola.
O rio primitivo secou,
e só restam as
gotas de chuva do presente.
Adeus ao mundo por trás do mundo!"

"Só as calçadas romanas levam mais além.
Só as ruas antigas levam mais além.
Onde fica a passagem
destas montanhas?
Berlim e as colinas também
possuem passagens secretas,
e só ali que começa a minha terra,
a terra do conto.
Por que todos não enxergam, tal qual as crianças,
os portos, os portais e as aberturas
que existem abaixo na terra
e acima, no céu?
se todos os vissem,
haveria uma história
sem assassinatos e sem guerra."

"Não irei conseguir esta noite. Nas noites de
lua cheia, nada de trapézio.
Mesmo que seja a última vez.
A última vez de todas.
Preciso despertar deste sonho.
O circo acabou! Fim.
Mais uma vez é como se a
noite caísse dentro de mim.
O medo... medo da morte.
Por que não a morte?
Às vezes, só o que importa é ser bela.
Fora isso, nada.
Olhar alguém no espelho
é como ver alguém pensar.
Então, o que estás pensando?
Penso que tenho o direito de ter medo,
sem ter de falar sobre isso.
Entretanto não está cega.
Seu coração ainda bate.
E agora chora.
Gostaria de chorar como uma
garotinha com uma grande tristeza.
Sabe por que chora?
E por quem? Não por mim.
Não sei por quem.
Gostaria de saber.
Não sei nada.
Tenho um pouco de medo...
Já se foi, está distante.
Mas com certeza vai voltar. Não importa.
Poder dizer simplesmente, como agora:
"Estou feliz".
"Tenho uma história,
e continuarei a tê-la".
O que estou fazendo?
Olho à minha frente e me deixo
arrastar ao espaço universal.
De novo este
sentimento de bem-estar!
Como se dentro do corpo,
uma mão se fechasse suavemente."

"Não posso vê-lo,
mas sei que está aí.
Eu posso sentir.
Está por aqui desde o dia
em que cheguei.
Gostaria de poder ver seu rosto,
apenas olhar nos seus olhos,
e dizer o quanto é bom "ser".
Apenas tocar algo.
"Como isto é frio!". "Isto é bom!"
Veja. Fumar, tomar um café.
E os dois juntos é fantástico.
Ou desenhar.
Você pega um lápis e faz um ponto,
depois uma linha reta,
e juntas formam uma boa linha.
Ah, e se suas mãos estiverem frias,
você as esfrega.
Vê? É muito agradável.
Existem tantas coisas boas!
Mas você não está aqui. Eu sim.
Gostaria que você estivesse aqui.
Gostaria que você pudesse falar comigo.
Porque em mim você tem um amigo.
Companheiro."

"- E então?
- Vou me jogar no rio.
É uma velha expressão humana
que só compreendi hoje.
Agora ou nunca. A hora da vau.
Mas não existe a outra margem:
só existe a vau enquanto estamos no rio
Entrarei na vau do tempo,
na vau da morte.
Nós ainda não nascemos: então irei descer.
Olhar de cima não é olhar.
Devemos olhar na altura de outros olhos.
Primeiro, vou tomar um banho.
Depois irei me barbear.
Possivelmente vou procurar um barbeiro turco
que também me dará uma massagem
até a ponta dos dedos.
Depois irei comprar um jornal, o qual
lerei das manchetes ao horóscopo.
No primeiro dia, desejo ser servido.
Se alguém quiser algo de mim,
mandarei procurar outra pessoa.
Se alguém tropeçar nas minhas pernas esticadas,
receberá minhas desculpas.
Permitirei que me empurrem,
e devolverei os empurrões.
Num estabelecimento lotado,
o garçom irá me conseguir uma mesa.
Na rua, o prefeito vai parar o carro oficial e me oferecer uma carona.
Serei familiar a todos,
supeito para ninguém.
Não direi uma palavra,
e entenderei todas as línguas.
Assim será meu primeiro dia.
Mas nada disso será verdade.
Irei tomá-la em meus braços,
e ela me tomará em seus braços.
- Parece que está bêbado.
- Sim.
Vamos!
Tem sabor.
Agora começo a compreender.
- Isto é vermelho?
- Sim.
- Está ferido?
- Hoje é um bom dia?
- Regular.
- E os canos?
- Os canos são amarelos.
- Amarelos.
- E aquele ali?
- Cinza azulado.
- Cinza azulado.
- E aquele?
- Violeta.
- E aquele?
- Laranja. Ocre.
- Ocre ou laranja?
- Ocre.
- Amarelo, vermelho.
- E aquele?
- Aquele é verde.
- Verde. E o dos olhos?
- É azul.
- Azul. Azul!
- Está muito frio, hoje?
- Vai logo passar.
- Gostaria de tomar um café.
- Tem dinheiro?
- Sim. Não!
- Fico feliz de que tudo esteja bem, hoje.
- Obrigado.
- Muito bonito!
- Um café.
- Com leite e açúcar?
- Puro.
- Ok."

"Não saberia dizer quem sou.
Não tenho a menor ideia.
sou uma pessoa sem raízes,
sem história, sem país.
Sempre insisto no mesmo.
Estou aqui, sou livre...
Posso imaginar o que quiser.
Tudo é possível.
Basta apenas levantar os olhos,
E me converto novamente no mundo.
Agora. Aqui mesmo.
Uma sensação de felicidade
que poderia durar para sempre..."

"Ela não se foi, Cassiel.
Eu sei.
Você irá encontrá-la novamente.
Esta noite, algo muito
importante irá acontecer.
Cassiel.
Ela vai me ensinar tudo.
Existem outros sóis além
daquele do céu, Cassiel.
Hoje, na noite profunda,
começará a primavera.
Outras asas irão crescer em mim,
muito diferentes daquelas a que estava acostumado.
Asas que finalmente me impressionarão."

"Devo finalmente procurar algo sério.
Já estive sozinha por muito tempo,
mas nunca vivi sozinha.
Quando estava com alguém,
quase sempre era feliz.
Mas, ao mesmo tempo,
me parecia só coincidência.
Aquelas pessoas eram meus pais,
mas podiam ter sido outras pessoas.
Por que meu irmão era o
garoto de olhos castanhos,
e não o garoto de olhos verdes
do outro lado da rua?
A filha do taxista era uma amiga minha,
Mas em vez do táxi, poderia ter
andado à cavalo.
Estava apaixonada por um homem,
mas poderia tê-lo deixado
para ir com o primeiro estranho que
se cruzasse conosco na rua.
Me olhe, ou não me olhe.
Dê-me a mão, ou não me dê.
Não.
Não me dê a mão.
E olhe para o outro lado.
Acho que hoje é lua nova.
A noite não poderia ser mais calma.
Por toda a cidade não correrá sangue.
Nunca brinquei com ninguém.
Mas também nunca abri.
Agora é sério.
Até que enfim é sério.
Então comecei a envelhecer.
Era a única que não tinha algo sério?
Será a época em que
vivemos pouco séria?
Nunca estive sozinha
Nem com os demais,
nem comigo mesma.
Mas teria gostado de estar sozinha.
A solidão significa ser,
por inteiro, um só.
Agora posso dizer:
finalmente estou só esta noite.
Devo colocar um fim
na coincidência.
A lua nova da decisão!
Não sei se existe o destino,
mas sei que existem decisões.
Decida.
Agora somos o tempo.
Não só toda a cidade,
mas o mundo inteiro
participa de nossa decisão.
Agoras somos mais do que apenas "nós".
Encarnamos algo.
Estamos sentados na praça do povo,
e a praça está repleta de pessoas,
que desejam a mesma coisa que nós.
Nós decidimos o jogo de todos.
Estou pronta.
Agora... é a sua vez.
Tens as cartas na mão.
Agora...
ou nunca.
Você precisa de mim.
Você irá precisar de mim.
Não existe nenhuma história mais
importante do que a nossa.
A do homem e da mulher.
Será uma história de gigantes.
Invisível,
traduzível,
a história
de novos ancestrais.
Olhe.
Meus ohos.
São a imagem da necessidade,
do futuro de todos
que estão nesta praça.
A noite passada
sonhei com um estranho,
com meu homem.
Só com ele podia estar sozinha.
Abrir-me com ele.
Abrir-me totalmente.
Para ele totalmente.
Recebê-lo totalmente em mim
como algo completo.
Cercá-lo no labirinto
da felicidade compartilhada.
Sei...
que é você."

"Algo aconteceu
e continua acontecendo...
Algo que compromete.
Foi assim à noite, e segue
sendo durante o dia.
Agora mais do que nunca.
Quem era quem?
Eu estava nela, e ela me envolvia.
Quem, neste mundo, pode afirmar
ter se unido a outra pessoa?
Mas eu me uni a ela.
Não geramos nenhum mortal,
apenas uma imagem comum imortal.
Nesta noite aprendi o
que é o total espanto.
Ela veio me levar para casa.
E ali encontrei meu lar.
Aconteceu uma vez.
Aconteceu uma vez e seguirá ocorrendo.
A imagem que criamos me acompanhará
até o momento da morte.
Terei vivido em seu interior.
O total espanto causado por nós dois,
o total espanto causado
pelo homem e pela mulher,
fez de mim um ser humano.
Agora sei
o que
nenhum
anjo
sabe."

"Me mostre os homens, as mulheres e as
crianças que procurarão a mim
a mim, seu narrador, seu cantor,
aquele que lhes dá o tom,
porque precisam mais de mim do
que de qualquer outra coisa no mundo.
Nós embarcamos!"